Lugar Nenhum, Tempo Suspenso
O entretenimento ocidental (e as trends atuais - que eu amo, por sinal - de “ser protagonista da sua vida”) tem uma tendência muito… agitada. Os heróis, mesmo quando não são super-heróis de filme de ação, estão em constante movimento e ser o principal está, quase sempre, associado à estar no centro de todos os acontecimentos.
Parece óbvio quando pensamos em protagonista de uma narrativa. Ele é o que FAZ a história acontecer… mas dar um passo pra trás também é fazer parte dela.
Eu sempre tive um fascínio inexplicável por aquelas casinhas em beira de estradas de terra, com suas lamparinas acesas dentro das janelas sem tranca e seus moradores sentados em uma cadeira simples do lado de fora, apenas observando a noite e os viajantes ocasionais.
Conversando anos atrás com uma professora queridíssima da faculdade, ela somou uma frase ao cerne do meu encanto “existem duas formas de se contar uma história: sendo a pessoa que está de passagem, em movimento, ou sendo a que está sempre parada no mesmo lugar vendo tudo se transformar”.
No segundo em que ela me disse isso (e agora de novo, enquanto te conto) me veio à mente uma imagem muito específica, de uma casinha de barro que vi na estrada entre São Luís do Maranhão e Barreirinhas. Era noite e quase todos no ônibus dormiam e tudo em mim queria descer para conversar com os dois senhores que nos observavam passar. Faz 13 anos que guardo essa cena e ela ainda me arrebata.
Em Japonês, Ma 間 é o espaço vazio. O entre - um acontecimento e outro, uma estrutura e outra, um espaço e outro. É o intervalo e a pausa.
Pesquisando agora a palavra pra trazer aqui o kanji, um texto aleatório me chamou atenção e, logo no primeiro parágrafo, ele citava Dudu Tsuda, que curiosamente foi meu professor na mesma época da supracitada professora (e em quem eu não pensava há uma década). Precisei dividir essa coincidência com você.
A Viagem de Chihiro sempre foi um dos meus filmes preferidos por muitos motivos e, entre eles, por tantos momentos calmos que ele traz, mesmo numa história de aventura. A cena dela comendo olhando o mar que se formou ou a do trem a caminho do Fundo do Pântano me fazem suspirar toda vez. Da mesma forma, as cenas que mais amo em Harry Potter são as - raríssimas - deles apenas existindo na Sala Comunal, sem grandes acontecimentos.
Descobrir o conceito de Ma costurou perfeitamente meus interesses entre vida & arte e resgatou minha calma em aproveitar os trajetos - literais e simbólicos - que nosso estilo de vida atual tenta sobrepor a qualquer custo, mesmo que apenas transformando aquele instante vazio em útil (ouvindo um podcast enquanto dirige, mexendo no celular enquanto espera numa fila…)
Voltando pro meu ponto inicial, pra além dos momentos de pausa e espaço em si, tenho apreciado cada vez mais o lugar de observadora, mesmo quando a cena é de ação. Aliás, eu sempre apreciei, mas há poucos anos, só, que me dei conta de que até a minha fotografia era uma ode à isso:
Todas as cenas nas ruas, suas personagens (muitas delas invisíveis pra tantos) e seus instantes mágicos que só foram guardados em uma imagem porque eu estava à margem da ação, não no centro dela.
Nossa mania de protagonismo o tempo inteiro nos rouba o encanto de perceber a vida como um todo. De enxergar o outro de verdade, não só como coadjuvante e útil para a nossa história.
O instante que eu vi uma mulher ser pedida em casamento no Central Park em um dia de Outono de céu impressionantemente azul, enquanto um coro gospel cantava What a wonderful world foi tão emocionante quanto os minutos anteriores, onde eu dançava com uma desconhecida cujo marido se recusou a dançar em público.
Eu provavelmente nunca mais vou ver o casal que ficou noivo, nem a mulher com quem dancei e, pouco depois, dividi um sorriso entre lágrimas ao ver o pedido de casamento, mas eles me fizeram sentir mais viva e inspirada por ser espectadora de suas vidas, mesmo que só por um segundo.
Assim como a vez em que, da janela do ônibus, vi um homem tirar seu casaco e entregar para o outro que estava sentado no chão, vai sempre me fazer acreditar em um mundo um pouco mais doce e acolhedor pra todos nós.
Em pausas, silêncios, espaços vazios e observação sempre existe a presença.
E talvez seja ela, mais do que um protagonista, que realmente conte as histórias.
Bê
meu Deus, Be! que texto lindo! uau! tô profundamente tocada!